No dia 10 de maio de 2025 estive em um evento para mulheres brasileiras em Lakeland no Tennessee (EUA). O convite era para falar sobre processo migratório e os impactos na identidade e na capacidade de se reconstruir em um novo lugar. Achei a ideia genial: poder estar perto de mulheres incríveis para conhecer suas histórias incríveis e tocantes e também poder abordar um tema comum e que atravessou – e ainda atravessa – a todas inevitavelmente: o luto migratório. Migrar é muito mais do que atravessar fronteiras geográficas. É também uma travessia subjetiva. Ao deixar o país de origem, deixamos também pedaços de nossa identidade: cheiros, sons, laços, um idioma que nomeava o mundo e nos nomeava de volta, simples códigos de cultura que nos rodeavam e pareciam fáceis de transitar. É um luto referente a múltiplas ausências e perdas.
Essa travessia desperta aquilo que na psicanálise chamamos de luto — um trabalho psíquico de elaboração da perda. Freud (1915), já dizia que o luto é uma resposta natural à perda de algum objeto de libido, algo que depositamos afeto, tempo, investimento de energia. Isso não necessariamente tem a ver somente com a morte de um ente querido, como costumamos imaginar, mas também a qualquer tipo de perda como a perda de um emprego, de um namorado (a), de uma cultura, do convívio familiar e com amigos, de um território, de uma forma de existir.
O luto migratório, como um processo de luto, não acontece em linha reta. É um ciclo que pode se repetir, retroceder ou se embaralhar. É cíclico e não há roteiro e nem tempo definido. Mas há, sim, estágios afetivos comuns:
1. Negação – “Vai dar tudo certo, só preciso me adaptar e vai ser rapidinho.” – Neste estágio é como se a pessoa visse a realidade como um iceberg: só vê a ponta, pequena em relação ao todo, ignora o restante, mas não conscientemente, sabendo que tem algo embaixo. Ela realmente acredita que a realidade daquele gelo é só a ponta que não tem nada embaixo.
2. Raiva – “Por que comigo? Por que é tudo tão difícil?” – No estágio da raiva a pessoa fica mesmo raivosa. Tudo diante dela é projetado com raiva: O famoso “nós vs eles”, “eu vs eles”; é comum que nada aqui agrade e a pessoa não consiga reconhecer nenhuma qualidade positiva diante do que vive.
3. Barganha – “Se eu me esforçar mais, talvez as coisas voltem ao normal.” No estágio da barganha é como se tentássemos negociar com a vida, com Deus, com o Divino, com o tempo, o que vamos conseguir conquistar caso a gente faça algo em troca, algo que esteja no nosso controle, algo que a gente possa entregar.
4. Tristeza – “Não sou daqui. Mas também já não sou mais de lá.” No estágio da tristeza, é onde sentimos o contato com as perdas visíveis e invisíveis. É quando manifesta aquela saudade muito intensa das pessoas, dos lugares, daquela versão de si mesmo que ficou no país de origem. Pode vir também com uma sensação de desencaixe, de não-pertencimento, nem ao país de origem, nem ao novo, acompanhada de pensamentos como “perdi minha base, minha referência, minha língua”. É quando a negação e a raiva dão espaço para o que foi deixado para trás ser realmente encarado, sentido e concretizado. A sociedade tende a dizer que devemos ser felizes sempre, não há espaço para sentir tristeza e muitas vezes somos julgados quando demonstramos isso. No fundo, sentir tristeza e poder se aproximar dela sem tanto receio é a única forma que temos de avançar para uma etapa mais saudável do luto, e que permite que aquela energia que investíamos tanto naquele objeto perdido, possa voltar e se ligar a novos objetos, criando uma possibilidade de ressignificação. Essa etapa é a aceitação.
5. Aceitação – “Não sou o mesmo, mas posso ser outro sem perder quem fui.” A etapa de aceitação é a porta para podermos reconhecer que há vida possível mesmo com a perda. É quando a dor (tristeza) dá lugar à construção de novos sentidos. No caso do luto migratório, ressignificar a identidade fora do país de origem não significa abandonar quem fomos, mas reconhecer-se em movimento constante, não presos na permanência das coisas e dos objetos. Não somos os mesmos de ontem e nem tampouco os mesmos de amanhã, mas podemos carregar dentro de nós todos os lugares pelos quais passamos e crescemos e os diferentes “eus” que ali viveram. Não é sobre romper, é sobre somar.
O luto torna-se aceitação e elaboração quando conseguimos, depois de muito trabalho psíquico, retirar o excesso de energia investida no que foi perdidoe coloca-la em novos vínculos e projetos. Não se trata de esquecer, nem de apagar o que ficou para trás, mas de dar um lugar ao passado e, ao mesmo tempo, permitir que algo novo floresça. Quando retiramos uma planta de um vaso com as raízes e decidimos plantá-la em um novo recipiente, a planta se bem cuidada não se nega ao solo novo, ela consegue aprender a florescer nele. Lacan nos diz que não há movimento possível sem falta. Se somos sujeitos desejantes porque somos marcados pela falta, migrar nos confronta justamente com essa falta estrutural: não há retorno possível completo ao que éramos. A saída, portanto, não é substituir o que falta – até porque seria em vão – mas lidar com essa falta e conseguir nos reposicionar diante do que falta.
Elaborar luto migratório é, enfim, aceitar que levamos dentro de nós os diversos lugares pelos quais passamos junto ao que está se construindo aqui e agora. As saudades viram motor de criação de um novo tempo somado à nossa história de vida que permanece viva e em movimento, não importa onde.